Esse artigo foi publicado em inglês por Dr. Jason Fung. O original está aqui.
Abaixo tradução realizada por Rui Ramos Neto
Ao longo da história da humanidade, o jejum tem sido uma prática tradicional de saúde e de cura. Isso é verdade para praticamente todas as regiões da Terra e praticamente todas as religiões do mundo. As raízes desta antiga tradição de cura podem estar no processo de limpeza sub-celular da autofagia, que só agora está sendo desvendado pela ciência. A autofagia é uma das vias mais conservadas evolutivamente que se sabe, e pode ser vista em quase todos os organismos multicelulares e muitos organismos unicelulares. Autofagia refere-se à resposta do corpo à falta de comida (jejum) que estimula uma via de degradação de componentes sub-celulares.
Ao digerir as suas próprias partes, a célula faz duas coisas. Primeiro, ela se livra de proteínas desnecessárias que podem estar danificadas ou causando mau funcionamento. Em segundo lugar, recicla essas “peças sobressalentes” de aminoácidos em novos componentes celulares. Este é um dos grandes equívocos do turnover normal da proteína – que essas proteínas quebradas são, de alguma forma, apenas excretadas pelo corpo, mesmo que ele esteja completamente desnutrido. Isso leva à polêmica que que “o jejum queima o músculo”. Seu corpo armazena energia da comida como gordura, mas, assim que não come, queima músculo.
Na verdade, nossos corpos não são tão estúpidos assim. Uma vez que estas proteínas antigas são degradadas em aminoácidos, o nosso corpo decide se essas proteínas são descartadas nos rins como lixo ou fica no corpo para criar novas proteínas. As proteínas são constituídas por blocos de construção denominados aminoácidos. É como o Lego. Você pode destruir o sua casa de Lego e construir uma nova e melhor usando os mesmos blocos de construção. Isso também é verdade em nossos corpos. Podemos quebrar as proteínas antigas em aminoácidos e usá-los para reconstruir novas proteínas mais funcionais.
Yoshinori Ohsumi, o vencedor do Prêmio Nobel 2016 de Medicina pela pesquisa em autofagia, com o título “Autophagia – Um Sistema de Reciclagem Intracelular” – Se você precisar de proteína, seu corpo irá recuperar os aminoácidos quebrados para criar novas proteínas.
Claro que se o seu corpo tem mais proteína do que o necessário, certamente vai excretar o excesso de aminoácidos ou convertê-lo em energia. Enquanto a maioria das pessoas pensa que o crescimento sempre é bom, a verdade é que, em adultos, o crescimento é quase sempre ruim. O câncer é muito crescimento. A doença de Alzheimer é o acúmulo de muita proteína ruim (emaranhados neurofibrilares) no cérebro. Os ataques cardíacos e derrames são causados por placas ateromatosas. Estes são o excesso de acumulação de muitas coisas, mas proeminente, células musculares lisas, tecidos conjuntivos e materiais degenerativos. Sim. Muito crescimento do músculo liso é fundamental para causar aterosclerose que causa ataques cardíacos. As doenças policísticas como nos rins e ovários são muito crescimento. A obesidade é muito crescimento.
Certos tipos de estresse celular, incluindo privação de nutrientes, agregação de proteína ou desdobramento (aglomerados de proteína) ou infecções, ativarão a autofagia para neutralizar esses problemas e manter a célula em bom estado de funcionamento. Inicialmente, pensava-se que este processo era não seletivo, mas foi demonstrado mais tarde, ser seletivo para organelas danificadas (componentes sub-celulares) e patógenos invasores. O processo foi descrito em mamíferos, mas também em insetos e leveduras, onde grande parte do trabalho do Dr. Ohsumi foi feito desvendando os genes relacionados à autofagia (ATG). Ele confirmou que esta via de limpeza e reciclagem foi conservada durante a maior parte da vida na Terra, desde organismos unicelulares até humanos.
A autofagia ocorre em um baixo nível basal em praticamente todas as células, sendo importante na renovação de proteínas e organelas. No entanto, pode ser regulado para gerar nutrientes e energia. Ou seja, as proteínas podem ser queimadas para gerar energia no processo de gliconeogênese, se necessário. O estado nutricional, hormônios, temperatura, estresse oxidativo, infecção e agregados de proteína podem afetar a autofagia de diferentes maneiras.
O principal regulador da autofagia é o mTOR (Mammalian Target of Rapamycin). Quando mTOR aumenta, ele desliga a autofagia. O mTOR é extremamente sensível aos aminoácidos da dieta (proteína).
O outro principal regulador é a proteína quinase ativada por AMP (AMPK). Este é um sensor de energia intracelular, que é conhecido como adenosina trifosfato ou ATP. Toda célula que possui muita energia armazenada, tem uma grande quantidade de ATP, que é uma espécie de moeda de energia. Se você tem muitos dólares, você é rico. Se você tem um monte de ATP, sua célula tem muita energia para fazer coisas.
A AMPK detecta a relação AMP / ATP e, quando esta proporção é baixa (baixos níveis de energia celular), o AMPK é ativado. Baixa energia celular = AMPK alto, então este é uma espécie de indicador de combustível reverso do estado da energia celular. Quando o AMPK é alto (combustível baixo), isso para a síntese de ácidos graxos e ativa a autofagia.
Isso faz sentido. Se suas células não têm energia, não vão querer armazenar energia (fazer gordura), mas sim ativar a autofagia – livrar-se do excesso de proteína e possível queimá-la por energia.
Uma vez que a autofagia é ativada (diminuição do mTOR ou AMPK aumentado), em seguida, cerca de 20 genes (ATG) são ativados para realizar o processo de limpeza. Estes codificam proteínas que realizam o processo real. Uma vez que o mTOR é um potente inibidor da autofagia (o mTOR atua como um freio na autofagia), o bloqueio do mTOR aumenta a autofagia (isto é, retirando o pé dos freios). Você pode fazer isso usando a droga rapamicina, usada pela primeira vez como agente bloqueador do sistema imune em transplante. Esta droga foi descoberta em 1972, isolada de uma bactéria Streptomyces Hygroscopicus da Ilha de Páscoa, também conhecida como Ilha de Rapa Nui (daí o nome da rapamicina). Foi desenvolvido como um antifúngico e descobriu-se que possuía propriedades de supressão do imunidade, de modo que ganhou um novo uso como medicamento anti-rejeição.
Quase todos os medicamentos anti-rejeição aumentam o risco de câncer. O sistema imunológico atua como guardas de segurança, dia após dia buscando células de câncer errantes e matando-as. Eles chamam essas células de células Killer naturais por isso. Se você derrubar os guardas de segurança com potentes medicamentos anti-rejeição, o câncer pode se espalhar como um louco. E é exatamente isso que acontece com a maioria desses medicamentos.
Mas não rapamicina. Curiosamente, esse medicamento diminuiu o risco de câncer. O mecanismo de sua ação, desde a sua introdução na década de 1990, era amplamente desconhecido. Eventualmente, usando modelos de leveduras, o alvo da rapamicina (TOR) foi identificado, e a contraparte humana logo foi descoberta – daí o nome TOR de mamífero, agora com o apelido de mTOR.
O mTOR é encontrado em praticamente todos os organismos multi-celulares e, de fato, muitos organismos unicelulares, como fermento (onde grande parte da pesquisa sobre autofagia é feita). Esta proteína é tão importante para a sobrevivência que nenhum organismo vivo funciona sem ele. O termo técnico para isso é “conservado evolutivamente”. O que isso faz? Simplificando – é um sensor de nutrientes.
Um dos trabalhos mais importantes para a sobrevivência é ligar os nutrientes disponíveis no meio ambiente e o crescimento da célula ou organismo. Ou seja, se não há comida, então as células devem parar de crescer e entrar em um estado adormecido (como o fermento). Se os mamíferos acharem que não há comida, eles também param o crescimento excessivo de células e começam a quebrar algumas proteínas. Se você não faz isso, você não sobrevive.
O mTOR integra os sinais entre alimentos (disponibilidade de nutrientes) e crescimento celular. Se alimentos estão disponíveis, então cresça. Se não houver comida disponível, pare de crescer. Esta é uma tarefa de vital importância que está subjacente a todo o espectro de doenças de “crescimento demais” de que falamos anteriormente. É semelhante a, mas muito mais antigo do que outro sensor de nutrientes sobre o qual falamos muito – insulina.
Mas esse conhecimento abre um potencial terapêutico totalmente novo. Se temos muitas doenças de “crescimento demais” (câncer, aterosclerose, obesidade, ovários policísticos), então temos um novo alvo. Se pudermos desligar os sensores de nutrientes, podemos parar muito desse crescimento que está adoecendo as pessoas. Um novo paradigma.
Veja o artigo em inglês:
https://idmprogram.com/fasting-and-autophagy-mtor-autophagy-1/
Olá Dr Rui.
Vi uma matéria jornalística de Portugal que diziam que se houver muita autofagia, esta autofagia pode causar câncer. Pelo o artigo que traduziu em entendi o contrário, pode ajudar na cura do câncer. Isto é certo?
Os estudos demostram que existe uma possiblidade que abre caminho mas estudos mais complexos precisam ser realizados. Pela fisiologia faz sentido. Mas atualmente e com estudos que existem até hoje não se pode dizer que cura câncer.